A limitação da pele negra é o privilégio do corpo branco

A limitação da pele negra é o privilégio do corpo branco

Há, na constante imposição de demérito à negritude, ausência de consciência racial como resultado de falta de memória histórica. O quanto, ainda, um corpo preto precisa ser domesticado, catequizado, extirpado, para caber numa sociedade branca? Não é só a cor da pele. São os trejeitos, a cultura (inerente à resistência), a forma de caminhar, de falar, o comportamento, os costumes, a religião; tudo que difere um preto de um branco.E às vezes, tudo que assemelha um preto a um branco.

 

Uma mulher com a carreira consolidada, referência internacional para artistas de diferentes países, com o último álbum batendo recordes de venda e de consumo, e, ainda assim, Beyoncé nunca foi premiada na categoria “melhor álbum”, do Grammy – mesmo que seja a artista que mais levou estatuetas na premiação. Este ano perdeu na categoria para um homem branco e cisheteronormativo. Claro, existe a justificativa: “É a indústria”. Todos sabem, existe um corpo e uma cor que comercialmente vende mais. Isso não invalida a vitória dele, tampouco diminui a carreira dela, mas, todo negro sabe da busca incessante pelo reconhecimento. Porque não basta fazer tão bem quanto uma pessoa branca, tem que fazer o suficiente para que o mercado valorize “apesar da cor”. Esse “apesar da cor” é o que dói, é o que mata, e é inalcançável numa sociedade estruturada sob o racismo.

 

E quando o mercado valoriza, a crítica – que é branca – não perdoa. Rihanna é um fenômeno mundial há quase duas décadas, há 10 anos que a organização do Super Bowl – campeonato que representa bem significativamente a cultura branca norte-americana – convida a cantora para se apresentar no evento final. Com o show, que ficou em segundo lugar como apresentação mais assistida da história do Super Bowl (superando a audiência do jogo em si), chegaram as críticas. De que ela foi insuficiente, porque não dançou, porque não convidou outros artistas; porque só ela não basta. Críticas que desconsideram a gravidez da cantora e a forma como ela se apresenta; Rihanna sempre foi presença de palco e canto, nunca uma estrela da dança, e não seria agora, no meio de sua segunda gestação, num palco aéreo, que isso mudaria. Mas é que não basta. Quando é um corpo negro, nunca basta. Porque mesmo quando se chega longe, o reconhecimento não é integral. No Brasil, há uma ministra da Igualdade Racial – um Ministério histórico –, e ela mesmo sendo jornalista, ativista, e tendo criado um instituto para o combate à violência de gênero na política, é tratada como um anexo, adjacente à carreira da irmã. Anielle Franco é colocada como “a irmã de Marielle Franco”, o que não é negativo, Marielle foi uma grande mulher que deixou um legado de luta. Mas Anielle é Anielle, e deve ser reconhecida como quem é. Hoje representa outras Marielles, Anielles, outras mulheres negras, mas não deixa de ser uma pessoa, que está onde está por conta própria.

 

O discurso para a mulher preta, hoje, é “ocupar espaço”, mas isso tem sido tentado há tanto tempo. Só agora há um Ministério da Igualdade Racial, apesar do histórico do Brasil ter a questão racial como urgente desde 1.500, só agora há mais mulheres negras sendo reconhecidas na indústria da música e do cinema, apesar da cor de pele negra existir desde o surgimento da música e do cinema. O que tem sido tentado – por mulheres que enfrentam a imposição do padrão –, desde o começo, é a ocupação de espaços. Mas há limitadores. O limite é o privilégio do outro.

 

Este ano, uma jovem branca, que não estava em situação de risco financeiro ou de vida, gastou quase um milhão de reais, oriundos da reserva de dinheiro de vários alunos da Universidade de São Paulo, que iriam custear a formatura com esse valor. Ela não está presa. Ela desviou um milhão de reais, gastou uma parte, apostou uma outra parte na loteria, e não está presa. A polícia solicitou a prisão, e a Justiça negou. Enquanto isso, a Justiça autorizou a prisão da mãe negra que furtou 22 reais num supermercado, em São Paulo, porque, segundo a mãe, ela “estava com fome” e precisava alimentar os filhos. Não houve compreensão da Justiça para essa mãe negra, faminta e desesperada

 

Existe um entendimento equivocado sobre a desigualdade ser natural; como se a pobreza ou a riqueza, as oportunidades ou a falta de oportunidades fossem destinadas às pessoas e, a partir disso, com lugares estabelecidos desde o nascimento, os indivíduos vivessem a vida, seguindo o percurso “natural” da fome, ou da fartura, do emprego digno ou da subsistência, até mesmo da felicidade ou da ausência dela. Há, no imaginário social, o pensamento meritocrático de que é possível alcançar determinados objetivos se, simplesmente, buscar essas conquistas, como se os obstáculos fossem os mesmos para diferentes pessoas. E, por consequência, a ausência de itens básicos, por exemplo, fosse uma escolha – resultado do fracasso em “tentar uma vida melhor”, quando a raiz do problema é bem mais profunda.

 

Um corpo negro e pobre não é recepcionado da mesma forma que um corpo branco com alto poder aquisitivo. Não está relacionado à capacidade de cada indivíduo, mas ao treinamento induzido ao olhar no decorrer do desenvolvimento humano – a sociedade treina o indivíduo por meio da ótica racista entranhada em cada poro da estrutura social. Se as pessoas são visualizadas de forma diferente pela cor da pele e/ou pela situação econômica, elas sofrem preconceito no segundo que são vistas, independente de qualquer outra variável. A cor ainda projeta a trajetória de uma vida.

 

Assim, o valor oferecido às mulheres como Beyoncé, Rihanna, Anielle nunca será justo. Afinal, o corpo preto segue sendo o mais barato do mercado. E a mãe preta solteira, com três filhos para alimentar, será castigada não somente pelo delito de baixo valor, ocorrido num ato de desespero e fome, mas por resistir e colocar no mundo, crianças pretas; enquanto a estrutura incentiva o embranquecimento, a mãe preta gera a vida negra com o nome de resistência.

Lins Robalo

Rayssa Mambach  

Mandata Popular

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