O CAMINHO PARA A ESCOLA

O CAMINHO PARA A ESCOLA

Algo macabro parece acontecer antes de pisarmos na escola pela primeira vez.
Ninguém precisamente nos conta, mas de alguma forma parecemos criar, rapidamente e de
antemão, uma interpretação de como nossos anos escolares serão. Creio que transitei
entre duas visões por muito tempo. Ainda lembro quando meus pais pararam o “livreiro” que
passava pela rua de minha casa em Pelotas e presentearam minha irmã e eu com uma
coleção de livros coloridos com contos de fadas, a primeira de muitas vezes. Esse foi um
gesto pequeno que me ensinou algo muito valioso: leitura é prazer, contato e refúgio.


Desta forma, quando entrei para escola aprendi que leitura também pode ser um
objeto de estudo, e isso me deixou muito curioso na época. Em pouco tempo, já me via
brincando de professor e recrutando as crianças da quadra para o jogo, até mesmo aqueles
que estavam mais adiantados no colégio. Esperava ansiosamente para visitar uma tia que
trabalhava de faxineira na casa de uma bibliotecária, essa que sempre presenteava minha
parente com materiais didáticos, alguns dos quais eu não compreendia nada, porém todos
me intrigavam. Não demorou muito para que minha brincadeira fosse ficando sem alunos,
outras brincadeiras se tornassem as favoritas e em seguida parássemos de frequentar o
parque do bairro de vez: algo tinha acontecido.


Por algum tempo pensei que a escola estivesse tirando o gosto da leitura e do
aprendizado em mim e de meus colegas, porém hoje desconfio que essa acusação seja
injusta. Nosso sistema escolar atual não foi projetado para contemplar crianças e
adolescentes, ele é uma jornada de trabalho exaustiva que se não perde o propósito na
quantidade, se dissolve nas intenções do estado, esse que não tem interesse algum em
emancipar criticamente sua população, mas se dedica à tarefa oposta. É claro que não
podemos esquecer da falta de representatividade nesses locais, os problemas financeiros, a
pressão e diversos outros fatores que criam obstáculos de diferentes tamanhos entre os
sonhos dos alunos. Queremos nos formar e conseguir um emprego, queremos terminar o
curso de inglês e viajar para fora: queremos acabar logo. De toda forma, percebo que a
educação, na sua mais pura essência também é mais um dos obstáculos, é no destino e
nunca na jornada que nossos alunos encontram a satisfação.


Após percalços financeiros, rebeldia e traumas da adolescência, mergulhei na
universidade, no Letras Português/Inglês da Universidade Federal de Pelotas, recebendo
assim meu diploma do ensino médio através da prova do Enem. É dispensável dizer que
não acreditava que valeria a pena fazer a prova, ou de que eu passaria no teste, mas dentro
de mim, de alguma maneira eu sempre imaginei que se eu tivesse uma chance, eu
conseguiria, e eu consegui. Me formei em quatro anos, com o apoio constante de meus
pais.


E nessa jornada curta, que acabou de começar, o momento que mais me marcou foi
um de meus estágios de regência em uma escola na periferia de Pelotas, com uma turma
de nono ano. No primeiro contato com os alunos decidi fazermos uma dinâmica para que a
gente pudesse se conhecer melhor: escreveram o que gostariam de ser quando adultos e
colocaram em uma urna, o plano do dia era trabalhar com gêneros textuais. Tudo corria
muito bem até o momento de revelar as profissões escritas nos papéis: astronauta,
cozinheiro, policial, jogadora de futebol entre outros. A cada palavra revelada os alunos
riam, risada que foi crescendo até tornar-se impossível o andamento da aula,
desconfortável com aquilo eu os questionei e assim ouvi o seguinte: “sabemos que não
seremos nada disso, vamos é ser traficantes”. Sabemos que a maior parte da população é
negra e ainda sofre com as cicatrizes do período de escravidão no Brasil, principalmente
nas zonas mais vulneráveis das cidades, porém tão doloroso quanto esse fato é que a
escola ficava há uma quadra do Campus da UFPel, campus no qual estudei. Depois dessa
primeira aula resolvi mudar o tema de meu estágio para cotas raciais, política que permitiu
que um aluno como eles estivesse ali dando aula para aquele grupo. As sensações que
ficam são duas: ao sair de cada aula o trabalho não havia ainda sido finalizado, mas uma
semente havia sido plantada, agora é dever da família e do estado germinar esse fruto. E a
segunda é a esperança de que eles também possam pertencer e mudar o mundo no futuro.


Adriano Noé Voltmer, 25 anos.
Professor de Língua Portuguesa e Inglesa